Megaempreendimento urbano tocado pela Prefeitura de Teresina afeta o direito ao lazer e à segurança de centenas de crianças e adolescentes, forçadas a abrir mão das brincadeiras de rua e do convívio com os vizinhos. Ilustrações de Aline Guimarães (Línea) sobre foto de Moura Alves.
Aldenora Cavalcante*
Quando as casas começaram a ser seladas, muitos moradores ficaram aflitos. As assistentes sociais batiam de porta em porta, falavam rapidamente sobre o Programa Lagoas do Norte e adentravam o espaço para colher dados que serviriam para o cadastro do imóvel. Na saída, o ultimato: nenhuma construção ou melhoria deveria ser feita a partir dali. Lares que abrigavam famílias por gerações poderiam ser retirados a qualquer momento.
A notícia percorreu rapidamente treze bairros da zona norte de Teresina, capital do Piauí, impactados pelo programa. Aqueles que tinham condições de buscar informações a respeito descobriram uma obra orçada em 176 milhões de dólares, com financiamento do Banco Mundial e participação de recursos da Prefeitura Municipal de Teresina e do Governo Federal através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A obra já estava planejada e articulada para iniciar em 2008, seis anos antes do processo de selagem das casas. Dividido em duas fases, o megaempreendimento se arrasta há mais de dez anos, com previsão de ser finalizado em 2021.
Segundo a Prefeitura, intervenções sociais, ambientais e urbanísticas seriam feitas para melhorar a qualidade de vida dos mais de 110 mil habitantes daquela área em que investimentos dessa magnitude são escassos. Mas, para que isso acontecesse, parte da comunidade teria que sair. Histórias de vida inteiras precisariam ser reiniciadas em outros lugares e abrir o caminho para que as obras de concreto avançassem.
As promessas teriam vindo articuladas pela equipe do programa até então sem uma participação direta da comunidade afetada que, por sua vez, questiona a necessidade das remoções. Apesar do Marco de Reassentamento Involuntário do Programa Lagoas do Norte, seguindo recomendação do Manual Operacional do Banco Mundial, se comprometer a minimizar os impactos dos deslocamentos, a quantidade de famílias atingidas até o final da obra segue sendo uma dúvida.
Na 1ª fase, encerrada em 2015, 493 famílias foram retiradas. A 2º fase, ainda em andamento, prevê um total de 1.562 famílias afetadas com retirada total ou parcial de seus imóveis. Mas esse número já sofreu alterações durante a atualização dos planos de reassentamentos involuntários, divididos por área de afetação. Famílias que iam sair souberam que não vão mais precisar se mudar. Algumas foram avisadas da mudança há menos de um ano. Outras seguem esperando por respostas. A incerteza de quando a mudança vai acontecer, a dificuldade no acesso às informações que começaram a ser disponibilizadas somente após pressão da população e a falta de clareza de como o programa vai impactar suas vidas, é motivo de aflição diária.
Nesse contexto, crianças que não compreendem muito a situação, não recebem o atendimento e cuidados necessários, sentem as tensões dos conflitos ao testemunharem casas próximas às suas sendo derrubadas, se transformando em ruínas e seus vínculos de infância sendo perdidos. Enquanto os adolescentes reclamam da falta de áreas e atividades para eles e relatam que não utilizam os equipamentos de lazer já construídos pelo programa devido ao medo da violência e da repressão.
Em uma região marcada pela presença de comunidades tradicionais e por fortes expressões culturais e religiosas, a ideia de que muitas pessoas precisariam se mudar do lugar em que raízes, laços e afetos foram semeados vem como uma sentença de rompimento de uma vida inteira construída com tanto esforço. Os moradores não são contra projetos que tragam benefícios para a população. O que dói são as retiradas das famílias.
A angústia da incerteza
“Aqui já começaram a devastar. Eles tiraram o quarteirão todo abaixo e estão terminando de recolher [os escombros] lá em cima e também nas outras ruas”, diz Irmã Luzia Maria, enquanto aponta para o que antes formava uma casa de esquina. “Essas desse lado, eu fazia visita como agente de saúde”, acrescenta. “E essa aqui vai ser derrubada hoje. A família já deve ter saído”. Ela para, olha a casa de tijolos sozinha no meio da rua: de um lado, abandono, do outro, destruição. Por fim, lamenta a retirada das casas, sobretudo, durante a pandemia. Mas não se demora muito. Segue avançando, empenhada em mostrar outras ruas que ainda restam.
Durante suas andanças e conversas com a comunidade do bairro São Joaquim, a agente de saúde acompanha de perto as transformações que estão acontecendo por conta do Programa Lagoas do Norte. “Se você me perguntar, os grandes prejuízos são emocionais”, confidência Luzia.
Agente de saúde que conhece bem cada rua da comunidade São Joaquim, Irmã Luzia caminha entre os escombros contando casas que não existem mais. Crédito: Ilustrações de Aline Guimarães (Línea) sobre foto de Moura Alves.
Pelos caminhos de chão batido, o que antes era vida e brincadeira nas calçadas se transforma em mato, vazio e abandono. Poucos lares ainda se mantêm em pé. A rua que seguimos deságua na parte sudoeste da lagoa, identificada pelo programa como Oleiros. Esta área é onde as obras iniciadas se transformarão em ações de drenagem, urbanização, limpeza da água da lagoa e instalação de equipamentos públicos de convivência comunitária. Para isso, 436 famílias serão afetadas com imóveis atingidos de forma total ou parcial.
Essa parte está dentro da 2ª fase, onde foram finalizados dois parques nos bairros São Joaquim e Mocambinho, além da revitalização do ponto turístico Parque Ambiental Encontro dos Rios, e segue com obras de drenagem e urbanização no canal do bairro Matadouro e a requalificação das Lagoas do Mazerine e São Joaquim. Dentro do projeto, outras lagoas devem ser revitalizadas e espaços de lazer criados. Enquanto isso, são feitos novos estudos relacionados às alterações no sistema viário do dique do Rio Parnaíba que tem como consequência a duplicação da Avenida Boa Esperança.
Após o início das remoções, quem fica passa a conviver com um espaço cheio de entulho e propício a violências. Em uma rua em ruínas, Jéssica Maria Costa, 29 anos, abre a porta com desconfiança. Sua casa está entre as que foram definidas para serem derrubadas durante o processo de cadastro complementar feito em outubro de 2019. Em razão disso, acredita que é só questão de tempo para sua família ser a próxima a ter que sair. Mas, ao mesmo tempo, não sabe o que exatamente vai acontecer.
A espera e a incerteza têm tirado o sono e o sossego da jovem, do esposo e do seu filho de 3 anos. “É uma preocupação grande que a gente passa. Após a reunião que fizeram em janeiro, nunca mais falaram nada. Eu estou com crise de ansiedade, a um passo da depressão. Já marquei até a consulta com o psiquiatra”, desabafa, quase chorando, enquanto faz sinal para mostrar o documento da consulta na mesa.
O filho sorri com curiosidade atrás da mãe. Sentado em cima da bicicleta parada, vestido com uma camisa de homem aranha, ele está há meses brincando sozinho dentro de casa. Com a retirada dos vizinhos, as brincadeiras que tinha com outras crianças e suas andanças de bicicleta acabaram. “Aqui perdemos todo o lazer”, lamenta Jéssica, recordando os encontros com outras mães na calçada e as brincadeiras dos pequenos aos finais de semana. Agora, a rotina da família é tomada pelo medo. “Eu não tenho mais coragem de ficar sentada na porta porque a derrubada das casas está dando acesso para pessoas que não conhecemos e alguns usuários de droga. E o meu filho não tem mais ninguém para brincar, só tem uma criança da idade dele que já está para sair”.
O cenário de destruição reforça em algumas famílias a ideia de que a região não é mais um lar. Ainda assim, a mudança não é um desejo para Jéssica. Mas, no programa, segue sendo a única solução. “Se eles dessem a opção de ficar, eu ficava”, afirma com convicção. “Aqui é tudo perto, tem creche, escola, é um pulo para o Centro, minha mãe mora a cinco minutos, se acontece alguma coisa, chego lá rapidinho. E para onde querem que a gente se mude é longe e muito perigoso. Eu já vi lugares perigosos, mas ali é surreal. Meu marido passa o dia trabalhando e eu não tenho coragem de me enfiar ali dentro sozinha com uma criança”, acrescenta fazendo referência ao Residencial Parque Brasil, conjunto localizado no extremo da zona norte que está sendo construído como alternativa para o reassentamento. Caso não aceite, poderá optar por ser indenizada ou passar pelo processo de reassentamento monitorado.
Sob ameaça de despejo a qualquer momento, Jéssica vive em estado de tensão permanente, sem paz, sem lazer e com medo da futura moradia, num lugar distante e perigoso. Crédito: Ilustrações de Aline Guimarães (Línea) sobre foto de Moura Alves.
Formas de compensação previstas no Plano de Reassentamento Involuntário:
Indenização: remuneração paga ao beneficiário que sofre um procedimento desapropriatório/ reassentamento sobre seu imóvel. O valor será pago em parcela única, previamente acordado e definido por meio da avaliação imobiliária, benfeitorias e meios de vida.
Reassentamento Monitorado: solução de compra assistida de imóvel, possibilitando a recomposição da moradia com padrão construtivo similar ou superior ao inicial.
Reassentamento em Residencial do Programa: a família que optar por essa forma de compensação será beneficiada com uma unidade habitacional localizada no Conjunto Parque Brasil disponibilizadas em 3 tipologias – Casa térrea (48m²), Casa térrea com área para comércio (81m²) e Apartamento (48m²).
Relocação Temporária – Aluguel Social: consiste no pagamento mensal à família optante pelo residencial do PLN para que possa alugar um imóvel pelo período necessário até sua relocação definitiva.
Compensação por Serviço: consiste na oferta de permuta por serviços, no valor referente ao pagamento da indenização da afetação parcial, direcionados para recomposição e/ou a melhoria das condições sanitárias do imóvel.
Auxílio Moradia: consiste no pagamento de compensação para manutenção de até doze meses de aluguel da família afetada.
Reassentamento Cruzado: consiste na permuta entre imóveis localizados em áreas de afetação com imóveis localizados em áreas não afetadas.
Reassentamento Prioritário: Consiste na antecipação do reassentamento em casos de vulnerabilidade e/ou risco
As consequências da partida já são uma realidade para as famílias que foram divididas pela mudança. Francilene Teles, ao optar pelo reassentamento monitorado, realizou a compra assistida de um imóvel em uma área distante para viver com o marido e os três filhos. Foi onde conseguiu encontrar um lugar com o valor de R$ 77 mil reais que recebeu do programa. A mudança ainda afeta muito a sua filha adolescente, de 16 anos, que sente falta do lugar onde nasceu e se criou. E quando a saudade aperta, a jovem pega a bicicleta, atravessa a ponte e pedala os dez quilômetros de distância até a casa do avô. “Ela chega aqui vermelhinha do sol quente e fica brincando com os sobrinhos, principalmente com aquela ali que ela é madrinha”, conta sua tia Maria de Jesus, apontando para Milena, de 2 anos.
Mesmo com poucos meses de mudança, Maria de Jesus explica que a irmã já está arrependida de ter ido. Ao pensar nisso, lembra da sua casa que está com a reforma incompleta. Na época do cadastro dos imóveis que poderiam ser desalojados pela 2º fase, em 2014, Maria de Jesus foi informada de que teria que parar a construção. “Disseram que quando o programa passar, aí que iam ver se minha casa sairia ou não. De lá para cá, deixei tudo como estava e tive que vir morar aqui na casa do meu pai com minha filha, o esposo e meus três netinhos”, sorri e acrescenta: “E daqui a pouco já vai nascer outro, minha filha tá grávida de mais um menino. Aqui tive meus três filhos, foi o lugar que criei todo mundo, que meus netos nasceram. A herança que conquistei é muito grande”, reafirma.
Se a mudança vier, a família de Maria de Jesus será separada outra vez. Enquanto o desejo de permanecer transborda em seu peito, seus netos brincam juntos na porta de casa. Jardiel, de 6 anos, confessa que também quer ficar na casa em que mora com a avó, e na rua em que brinca com os amigos. Pare ele, o lugar permite que ande livremente de bicicleta até o fim da tarde.
A avó, os passeios de bicicleta e os amiguinhos da vizinhança são o mundo que o pequeno Jardiel não quer perder. Ilustrações de Aline Guimarães (Línea) sobre foto de Moura Alves.
A adolescência roubada
Para quem teve que se mudar há mais tempo, a falta de alternativas de lazer para os filhos é uma questão que preocupa dia após dia. Segundo o Marco de Reassentamento Involuntário, o programa realizou trabalho de suporte após a finalização da 1º fase com ações de apoio à reinserção das famílias reassentadas. Mas as atividades que garantam o direito ao lazer para crianças e adolescentes se limitam à realização de eventos pontuais.
Para José**, a região em que mora não possibilita que os filhos brinquem livremente e em segurança. O Parque Linear Lagoas do Norte, com suas áreas arborizadas ao ar livre, pistas para caminhadas, ciclovias e quadras de esportes, criado para esse fim, até poderia ser uma escolha para seus três filhos. Mas, com o tempo, deixou de ser uma opção. O mais velho, de 16 anos, foi proibido pelo pai de empinar pipa no local. Apesar do espaço amplo e sugestivo para a brincadeira, ele tem medo de que o filho sofra com a repressão da guarda municipal, que, segundo o pai, atua com abordagens injustificadas a jovens que moram no entorno do parque e vão ao lugar para se divertir com os amigos. “Uma vez, a polícia colocou ele para correr quando estava brincando com os amigos. Eu digo para ele não ir porque não quero ver filho meu apanhando. Eu nem bato nele e ele vai apanhar da polícia? Por quê? Ele não é bandido”.
Leandro**, 13 anos, concorda com o pai. “Eu sinto um pouco de insegurança porque a guarda municipal é muito agressiva com as pessoas”, desabafa em tom de indignação. A calçada acaba se tornando seu campinho de futebol particular, onde se reúne com os amigos da vizinhança para jogar bola no sol quente da tarde. É o único momento em que sai de casa. “Ficamos até a hora que os adultos reclamam”, deixa escapar. “Mas eu sinto falta de uma área pra gente brincar porque se tivesse, não precisávamos ficar na rua e nem correr risco de acidente na avenida que é muito movimentada”, confessa. E acrescenta: “Para mim, a gente só foi largado aqui e não teve mais nada, nenhum lazer além daquela praça que é perigosa igual a quadra que brincávamos”. Seu pai concorda: “Aqui deram só as casas mesmo. É um lugar precário para o jovem brincar”.
A família se mudou ainda na 1ª fase, quando 327 famílias optaram pelo reassentamento no Residencial Zilda Arns, bairro São Joaquim, ofertado pelo programa. O lugar que não está tão longe da região em que morava, oferece a vantagem da proximidade com o seu lugar de origem. Além de estar próximo de supermercados, hospitais e do centro da cidade. A localização é um privilégio, se comparada ao conjunto que está sendo construído para aqueles que serão afetados na 2ª fase e que terão que se mudara para bairros distantes. Apesar disso, parte dos moradores reassentados venderam suas casas e mudaram de endereços. Alguns acabaram voltando para o bairro que moravam, correndo o risco de passarem pelo processo de remoção pela segunda vez.
Nessa primeira fase, as ações de saneamento básico, instalações sanitárias e drenagem para controle de enchentes foram finalizadas em conjunto com o Parque Linear e a revitalização do Complexo Cultural Teatro do Boi. Entretanto, os locais de convivência comunitária, na prática, para os moradores são espaços a serem evitados. Enquanto os pais e as mães reclamam da falta de segurança, os adolescentes evitam transitar pela área por temerem a repressão policial.
Para Daniele Soares, pesquisadora, mestre em sociologia e assistente social que acompanha os impactos do programa desde a 1ª fase, não existem ações concretas voltadas para os jovens. “Você não tem um olhar sensível enquanto gestão e poder público para as demandas da juventude e da infância daquela comunidade”, pontua. “Em nenhum momento há a menção de como vai ser o acompanhamento em relação às crianças e adolescentes dentro do programa e nesse processo de remoção. Desconheço qualquer momento em que esse grupo foi protagonista nas escolhas das ações”, sentencia.
Para quem mora na região em que o programa está fazendo as intervenções, a sensação é a mesma. Sara Vitória, de 14 anos, conta que sente falta de ações dentro do projeto voltadas para os jovens e o incentivo à prática de esportes. Sem muita alternativa, a adolescente passa o dia em casa matando o tempo no celular. “Eu é que não vou deixar ela ir para o Parque Lagoas do Norte porque lá é perigoso”, reforça sua mãe, Joana D’arc se referindo ao parque linear.
A proibição de sair se estende para o mais novo, Nauê, de 9 anos, que não pode brincar na rua. “Do lado da minha casa tem um espaço que se tornou ponto de encontro de consumo de drogas e para ele não está vendo e convivendo com aquilo, prefiro que fique só dentro de casa”, afirma sua mãe. A diversão para a criança só acontece quando ele vai para a casa da avó. “Aqui é tudo família. São quatro casas só de parente e eles brincam com os primos”, explica Joana.
Os jovens também sentem a insegurança acompanhando seus passos. “Eu tenho um primo que mora na Avenida Boa Esperança, perto da minha avó e sempre que ele está voltando para casa eu e minha tia ficamos olhando até ele chegar, porque é recorrente jovens da minha idade serem abordados como se fossem bandidos, simplesmente por estarem caminhando na rua”, lamenta Eloá Norberta, de 18 anos. “A questão da marginalização dos jovens agora está maior”, complementa.
Os momentos culturais organizados pelos próprios moradores, bem como seus espaços de festa, também são alvo recorrente de vigilância. “Lá existem grupos de reggae, rap, tem a galera do batuque, mas isso o estado vê como vandalismo e trata todo mundo ali dentro da marginalidade”, comenta a pesquisadora Daniele Soares. Com suas atividades de lazer marginalizadas e a falta de espaços para se divertirem, os jovens ficam ociosos e mais expostos ao envolvimento com as drogas e outras atividades ilícitas. A adolescência se perde em meio à falta de oportunidades.
No lugar das famílias e suas histórias de vida ficou apenas o cenário de abandono, as fachadas destroçadas do que um dia foi um lar. Ilustrações de Aline Guimarães (Línea) sobre foto de Moura Alves.
Para além dos direitos básicos
A falta de assistência e atenção voltada para a infância e a adolescencia também é um problema que atinge aqueles que foram removidos na 2ª fase e optaram pela indenização. As famílias acertam a negociação da casa, recebem o dinheiro e vão atrás de lugar para reconstruir suas vidas tentando assegurar que isso tenha o mínimo de impacto para os filhos. Após iniciarem a mudança, têm de lidar sozinhos com a procura de acesso a direitos básicos como saúde, educação e lazer.
Para Valéria Valadão, a mudança afetou a família inteira. “Sofremos bastante porque a gente se criou ali, tinha um apego com os vizinhos de sentar na porta, conversar. Minha mãe lutou para aterrar o terreno e construir tudo e, de repente, tivemos que sair. Foi muito frustrante”, conta.
A casa estava localizada na Rua Antônio Pedro, uma das áreas de intervenções das obras de drenagem e saneamento do Canal do Matadouro iniciadas em 2017 que ainda não foram concluídas e provocaram a retirada parcial ou total de 29 imóveis. Com a notícia de que teria que deixar o lugar que vivia há mais de 30 anos, Dona Francisca, 82 anos, passou por momentos de muita tensão e nervosismo que fizeram com que sofresse com algumas quedas. “A última vez que caí, machuquei o ombro e senti o sangue na minha boca e no meu nariz. Fiquei tão nervosa que hoje estou sem caminhar”, conta. Como consequência do ocorrido, perdeu o movimento das pernas.
Após o recebimento da indenização, Valéria é enfática ao dizer que não teve nenhuma assistência para as filhas e para a mãe. “Nós só recebemos o dinheiro e depois mais nada”, pontua. Quando conseguiu agilizar a compra de um imóvel para ela e outro para a mãe, teve que descobrir sozinha os serviços essenciais. “Na mudança, eu estava de resguardo e foi a vizinha que me ajudou a procurar escola para a Kiara”, relembra.
Para a filha de 11 anos, a situação teve um impacto forte. “Foi difícil arrumar amigo e se adaptar à nova escola”, lembra. No início, Kiara sentia as consequências da mudança e teve que lidar com a queda do seu rendimento escolar. Para acompanhar os colegas de sala, levava tarefas extras para casa. As relações com os vizinhos e o quintal grande da avó também geram saudade. “Lá eu tinha minha madrinha que morava na casa da frente e levava a gente para a escola todo dia. E também sinto falta de brincar no quintal da vó que era grande e cheio de planta. Eu subia no pé de goiaba, me divertia muito e aqui não tem isso, o quintal novo da mãe é cimentado e não tem como plantar nada”, lamenta.
Mudanças como essas afetam os mais novos com igual ou maior intensidade que os adultos. Para que os impactos sejam amenizados, assegurar a prioridade da efetivação dos direitos previstos no Estatuto da Criança e Adolescente deveria ser a regra. Muito além dos direitos básicos como saúde e educação próximos à nova moradia, a mudança deve vir acompanhada da garantia de que todas as alterações na vida da criança não violem sua integridade psíquica e moral, bem como, resguarde o direito ao lazer.
“Mesmo quando se traz a questão da remoção, informando que na região tem escola e tudo, essas coisas são definidas constitucionalmente, são direitos sociais dessas crianças e adolescentes. Mas, e as outras coisas?”, questiona a pesquisadora Daniele Soares. “Se uma criança acaba sofrendo os impactos dessa mudança, podendo afetar sua saúde emocional, aquilo pode gerar um trauma e quem é que vai tratar e cuidar?”, provoca por fim.
Meu lugar é aqui: a luta pela resistência
Os impasses ao longo da implementação do Programa Lagoas do Norte ocasionaram um intenso movimento de resistência das comunidades afetadas. A luta pela permanência e reivindicações de direitos vem se fortalecendo desde o início da 2ª fase, em 2014, após o período de selagem das casas.
A atuação no sentido de garantir os direitos dos moradores deu origem ao “Lagoas do Norte pra quem?”, e a associações como o Gás do Norte e o Centro de Defesa Ferreira de Sousa, que se mobilizam no sentido de tentar barrar as intervenções, violação de direitos e os reassentamentos. Para Maria Lúcia, líder comunitária atuante na luta e vice-presidenta do Centro de Defesa, muitas pessoas que já saíram não tiveram escolha. “Não teve consulta prévia para a implementação do programa. E quem fica, sofre pressão para sair. A gente não entende porque um projeto que está investindo tanto dinheiro, não abraça as pessoas, não seja algo que vá inserir a população”, lamenta.
Contra a falta de diálogo e pela garantia de direitos, as comunidades afetadas pelo programa Lagoas do Norte se mobilizaram para pressionar o poder público e exigir explicações sobre as remoções das famílias. Ilustrações de Aline Guimarães (Línea) sobre foto de Moura Alves.
Segundo Stennyo Dyego, advogado popular que acompanha as famílias atingidas nesse processo, a falta de uma consulta à população é identificada como a principal violação de direito do programa. “O que se tem ao longo dos anos, depois de vários questionamentos da comunidade, são reuniões pontuais. Não se teve uma consulta popular, principalmente por se tratar de povos e comunidades tradicionais. O programa foi só executado”, enfatiza.
Os movimentos denunciam que a implantação do PLN não considera o perfil heterogêneo da população impactada, formada por comunidades tradicionais, carentes de melhores condições sócio-econômicas, além de não apresentar nenhuma outra alternativa para o avanço do programa que não seja a retirada das famílias. “A comunidade vem denunciando que primeiro a intervenção e a remoção involuntária acontecem e, só depois, quando instigado por alguma entidade é que o programa disponibiliza os Planos de Reassentamentos Involuntários. A gente não tem a dimensão se vai haver novos PRIs”, acrescenta Stennyo.
A luta tem recebido apoio do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Ministério Público do Estado do Piauí, Arquidiocese de Teresina, Defensoria Pública do Piauí e outras instituições. Além disso, procura unir forças com pesquisadores dentro da academia para que estudos, oficinas e atividades sejam feitas para documentar e dar visibilidade à luta pela resistência. Nos últimos anos, a comunidade está construindo o Museu da Boa Esperança para preservar as histórias e memórias dos moradores.
Desde 2015, a comunidade da Boa Esperança, que será afetada caso ocorra a duplicação da avenida de mesmo nome, move inquérito civil junto ao Ministério Público Federal (MPF) solicitando maior clareza quanto à necessidade de retirada das famílias da avenida para obras no dique e duplicação de trecho viário do local.
Em 2019, 202 famílias dos bairros Mafrense e São Joaquim, solicitaram uma investigação para o Painel de Inspeção do Banco Mundial alegando danos causados pelo reassentamento, bem como a preocupação com a falta de divulgação de informações e consultas. Como resposta, o Painel observou que pode haver uma relação entre a denúncia recebida e a falta de cumprimento de políticas e procedimentos no programa.
À medida que o programa avança, as famílias que desejam permanecer seguem lutando para que seus direitos básicos não sejam violados e para que seus filhos possam voltar a brincar pelas ruas da zona norte da cidade do sol.
Procurado, o Programa Lagoas do Norte através de sua assessoria de imprensa, esclarece que: – Sobre o processo de selagem e impedimento de realização de modificações nas casas que esperam pela intervenção do programa, afirma: “O processo de selagem dos imóveis foi para fins de cadastro: os imóveis selados poderiam ou não ser beneficiados pelo PLN. Aqueles beneficiados são convidados a participarem de reuniões elucidativas, onde são explicados todo o processo de reassentamento, as várias opções de reassentamento e o caminho a seguir até que a família esteja vivendo em imóvel seguro, em área livre de alagamentos. Os Planos de Reassentamento da segunda fase do programa estabelecem que cada uma das famílias beneficiárias tem como opções de compensação: indenização (em dinheiro, compensação por serviço, auxílio moradia) ; imóvel no residencial Parque Brasil (construído pela Prefeitura em parceria com a Caixa Econômica com projeto elaborado para atender a todos os requisitos de qualidade de vida da população); reassentamento monitorado, em que a família escolhe um imóvel na localização de sua preferência no valor de até R$ 77 mil (valor estabelecido pelo governo federal para unidades do Minha Casa, Minha Vida), desde que esteja em condições de habitabilidade (isso é analisado por engenheiro do programa) e em local livre de alagamentos, reassentamento cruzado (permuta entre imóveis localizados em áreas de afetação com imóveis localizados em áreas não afetadas). Em todos os casos são observados se a família possui comércio no imóvel de origem ou algum outro meio de subsistência. Tudo isso é considerado para o cálculo da indenização. Se as famílias tiveram a necessidade de modificar seus imóveis, os valores são recalculados, sem que as famílias tenham tido qualquer prejuízo. Todo esse processo de atendimento é feito por profissionais assistentes sociais e engenheiros qualificados. – Sobre a alteração de quantidade de famílias e imóveis afetados pelo programa, afirma que “o PLN trabalha de forma a minimizar o número de reassentamentos, por isso estuda e reestuda os projetos antes de iniciar os processos de reassentamentos. Os dados contidos nos PRIs podem sofrer alterações quando isso acontece”. – Sobre obras e reassentamentos durante a pandemia, o programa afirma que “no início da pandemia, seguindo as orientações dos decretos de isolamento social da Prefeitura de Teresina e do Governo Estadual, todas as obras, eventos e projetos de prática esportiva na área do parque, ações de reassentamento e reuniões presenciais com as comunidades foram paralisados. Os prédios da Unidade de Gerenciamento do Programa e da Unidade de Programa Socioambiental ficaram fechados enquanto durou o decreto de isolamento social, os servidores trabalharam em home office e aqueles beneficiários que tinham alguma dúvida ou precisavam solicitar algum tipo de atendimento emergencial, foram orientados a fazer por telefone ou virtualmente (redes sociais, email e Colab). Quando o COE liberou algumas atividades, as primeiras a serem retomadas pelo PLN foram as obras, de forma gradativa, sempre fiscalizando as adequações necessárias junto às construtoras, para proteger a vida dos trabalhadores. Em um segundo momento, os atendimentos presenciais passaram a ser permitidos pelo COE, porém de forma agendada para evitar aglomerações. E assim estão sendo feitos até o momento. Não há realização de reuniões presenciais com grupos de comunidades, como acontecia antes da pandemia, ainda por conta das orientações da Vigilância Sanitária. Em todas as suas ações, o PLN segue as orientações do COE, da Vigilância Sanitária e da FMS”. – Sobre repressão aos jovens nos parques do programa: “Nos canais de comunicação do programa com a população não há relatos de atuação repressiva da Guarda Municipal junto a jovens no parque. A Guarda é uma instituição ligada a outra secretaria da Prefeitura. Porém, o PLN sempre atua em parceria com várias outras secretarias para promover cursos e eventos de qualificação dos profissionais e, dessa forma, a Semcaspi, secretaria à qual está ligada a Guarda Municipal, é uma delas. O PLN já financiou e apoiou o desenvolvimento de diversas ações junto à escolas da região, como compra de instrumentos musicais para o projeto Banda Escola, desenvolvido pela Fundação Monsenhor Chaves em duas escolas nos bairros São Joaquim e Mafrense; e financiamento e execução do projeto Circo Social, que oferecerá o ensino da arte circense a diversas crianças e adolescentes da região a partir de 2021”. – Sobre a ausência de projetos e atividades continuadas de lazer para crianças e adolescentes impactados pelo Lagoas do Norte, afirma que “As famílias que vivem na área de abrangência do Programa Lagoas do Norte são conhecedoras das diversas atividades culturais, esportivas e sociais desenvolvidas tanto no âmbito do Parque Lagoas do Norte como em outros espaços da região, como os centros de produção, onde são ofertados cursos de capacitação para as diversas comunidades. Especialmente para o público infantil, o Núcleo de Educação Ambiental do Parque Lagoas do Norte elabora e executa diversas ações durante todo o ano, como o projeto Cineminha Ambiental, Colônia de Férias sempre em janeiro e julho, exposições e palestras nas escolas da região, incentivo ao esporte nos espaços do parque, formação de grupos de atletismo, capoeira, zumba, vôlei de praia, beach handbol, com incentivo a participação em competições até fora do Estado. Também é tradição no Parque, a realização de concertos natalinos, festas de bumba-meu-boi, reisado, dia das crianças, Campeonato de Pipas, apresentações da Orquestra Sinfônica de Teresina, festa junina em parceria com a comunidade, incentivo a missas e terços em parceria com a igreja católica, incentivo a eventos da umbanda e candomblé na Praça dos Orixás. Além disso, sempre que a comunidade quer realizar algum evento, o Parque Lagoas do Norte sempre dá apoio e cede os espaços”. – Sobre a falta de assistência às famílias reassentadas, afirma que: “As famílias que são reassentadas passam por um acompanhamento pós-mudança para o novo lar, com visitas periódicas de assistentes sociais para checarem como está a inserção na vizinhança. A elas são ofertadas cursos de capacitação e as orientações necessárias para que elas possam melhorar sua qualidade de vida”.
* Aldenora Cavalcante é feminista antirracista, jornalista nordestina, podcaster no Malamanhadas e mestranda em mídia e jornalismo pela Universidade do Porto (Portugal).
** Nomes fictícios para preservar a identidade das fontes.
***Esta reportagem foi produzida com o apoio da Énois Laboratório de Jornalismo, por meio do projeto Jornalismo e Território.
Originalmente publicado em: https://marcozero.org/acabou-a-brincadeira-na-terra-da-esperanca/
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