Cartas à cidade de Teresina
Uma pergunta se soma no meu corpo além de “Lagoas do Norte Pra Quem?” desde que a grande liderança do São Joaquim, de Teresina, do Nordeste e da América Latina, Lúcia Oliveira, enquadrou o Painel de Inspeção do Banco Mundial.
Eu explico o caso. Era sábado (14) e os gringos que vieram à mando do BM para inspecionar (?) as obras do Programa Lagoas do Norte, tinham sorte porque Teresina abria um sol ameno de março. Em roda, numa área arborizada e espaçosa em frente a casa de Dona Vitória, os técnicos do b(r)anco perguntaram “quem aqui é da comunidade e atingido pelo Programa Lagoas do Norte?”, numa clara tentativa de deslegitimar os técnicos populares que apoiam a comunidade e negar a fala a eles. Sagaz, Maria Lúcia pergunta de imediato “Quem aqui é de Teresina e é impactado pelo Programa Lagoas do Norte?”.
E desde então, esta pergunta não me deixa dormir como antes, por isso, quero afirmar alguns motivos para que você, morador e moradora de Teresina, se sinta responsável.
Eu, moradora de Teresina, sou impactada pelo Programa Lagoas do Norte, porque, segundo a Chefe do Painel de Inspeção, rebatizada por Ramania (porque é assim que a gente consegue pronunciar), o financiamento que o Banco Mundial destinou para o Prefeito Firmino Filho (PSDB) desterritorializar Teresina é na ordem de 80 MILHÕES DE DÓLARES, fora a contrapartida de PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e da Prefeitura. Banco não faz caridade, banco empresta para receber a juros. E eu, como /moradora da cidade de Teresina, sou impactada com este programa porque ao fim eu que vou pagar a conta para o Firmino entregar a Zona Norte para os seus amigos da especulação imobiliária.
Eu, moradora de Teresina, sou impactada pelo Programa Lagoas do Norte quando as comunidades tradicionais ribeirinhas, que protegem as beiradas do rio Parnaíba são ameaçados de remoção. Os modos de vida dos povos originários indígenas foram quem sempre protegeram nossas matas e nossa casa para que púdessemos viver.
Hoje seus descendentes, assim como os descendentes dos negros escravizados que ali na zona norte se refugiavam, são os responsáveis por proteger e respeitar a nossa grande mãe natureza, pois vivem na circularidade biointerativa com o entorno. Eu, moradora de Teresina, sou violada quando as comunidades tradicionais que fazem o replantio às margens do rio, são violadas.
O que Firmino não sabe ou não considera é o que o morador Raimundo, vulgo Novinho sabe: o pedaço de chão que Firmino quer foi dos indígenas potis, mais tarde povoado por escravizados. Essa Terra tem magia, meu bem. Essa terra foi antes dos povos originários e continuará a ser.
Eu, moradora de Teresina, sou violada quando os vazanteiros, oleiros, pescadores, são ameaçados de serem brutalmente retirados dos seus modos de vida e seus modos de trabalho, quando Teresina tem a taxa de desemprego com a maior alta de todas as capitais do Brasil – Segundo o IBGE entre 2016 e 2019 o incremento da população desocupada em Teresina é de 133%. São 70 mil pessoas desocupadas em Teresina – Vejo, novamente, o peso da colonização recair sobre os povos subalternizados pelo poder do capital. Novamente a colonização expulsa os donos da terra para entregar na mão dos especuladores. E eu, sou impactada com uma cidade de pessoas desempregadas que foram impedidas de viver desde os saberes da terra exercendo o seus ofícios.
Desde que o programa começou, oleiros foram obrigados a acabar com o seu trabalho e nunca receberam indenização por isso, Dona Dilma, Lúcia, Dona Joce são mulheres afetadas por este fator. Firmino filho matou o ofício de oleiro e não indenizou mulheres e homens que dali se sustentavam desde criança e nos entrega uma cidade com mais desempregados. Além disso, outros ofícios foram proibidos, tais como a criação de animais.
Eu, moradora de Teresina, sou impactada pelo Programa Lagoas do Norte, quando o Firmino Filho, ameaça de remoção terreiros de umbanda, congás, casas de orações e benzedeiras que ali vivem de uma sabedoria da terra e das águas. Sou impactada quando o Firmino filho quer remover os brincantes do Bumba meu Boi. Eu sou impactada, pois me torno uma mulher em uma cidade menos territorializada, com menos saberes, com menos cura, com menos brincadeira e menos cultura. Os terreiros de Santos são a possibilidade de cura para muitos de nós e a sabedoria e conhecimento de mães e pais de santo tem nos salvado da desagregação que atinge nossos corpos e mentes.
Não quero viver em uma cidade sem cultura e sem cura. Todo o meu corpo, mente e energia são impactadas e desterritorializados com as ameaças ao culto sagrado e a cultura do bumba meu boi, que também é ancestral e é sagrada. Se meu boi morrer o que será de mim, Teresina? Além disso, se soma, os ataques higienistas e violentos às tradicionais casas de reggae, com as batidas do Vila Bairro Segurança.
Também faço lembrar que o PLN ameaça fiéis de outros cultos como católicos e evangélicos que ali professam sua fé. Que inclusive, Firmino, como política de compensação criou a Praça dos Orixás em cima do lugar onde os evangélicos se reuniam, causando mais uma tensão entre moradores.
Eu, moradora de Teresina, sou impactada com o Programa Lagoas do Norte, quando o Firmino Filho usa das mesmas táticas dos colonizadores europeus quando no nosso território chegaram, de jogar povo contra povo. Quando Firmino coopta lideranças e moradores dos bairros onde existe resistência às remoções e coloca povo contra povo, eu, como moradora de Teresina sou impactada pois vejo as relações comunitárias e solidárias se esvaindo me deixando mais distante ainda de alcançar a humanidade que eu quero ser. Quando Firmino aposta na ação desagregadora das relações solidárias e no pacto da vizinhança, eu morro e sou inteiramente violada, pois luto por outro mundo possível, com outra sociabilidade sociabilidade possível.
Eu, moradora de Teresina, me sinto impactada, quando o Firmino Filho, quer remover famílias que ocupam a cidade, sentam na calçada, caminham, andam de bicicleta, sorriem para o vizinho e assim a tornam um lugar mais seguro, sobretudo para mulheres, crianças e idosos. Ao retirar essas relações, Firmino Filho quer que eu pague para ter uma cidade morta no concreta, sem pessoas nas ruas, sem relações, sem vida e com mais violência urbana. O modelo de cidade que Firmino quer para a Zona Norte é o mesmo da Zona Leste, onde vigoram os grande prédios e inexistem pessoas nas ruas. Eu sou impactada pelo programa lagoas do norte porque não poderei mais ir visitar Dona Helena e Dona Paruca para tomar um café na calçada depois delas terem me ensinado sobre as mais diversas plantas, muitas delas medicinais, que habitam os seus quintais de esperança.
Eu, moradora de Teresina, sou impactada ao caminhar pela rua Hiroshima, no localidade ora chamada de Inferninho, ora chamada de Cristo Rei, e encontro mulheres morando em barracões de pau e lona. Suziane, nos conta, na presença do painel de inspeção – que talvez tenha sentido mais nojo do que compaixão solidária – que morava na casa que hoje são escombros, em frente ao seu barracão. Ela conta que ali, numa mesma casa, moravam várias famílias, uma delas pegou o dinheiro e foi embora. Uma outra mulher se aproximou e diz que nem barracão tinha para morar. Eu pago pela conta do “financiamento” e Firmino Filho me entrega uma cidade com mais déficit habitacional. O Piauí é o quarto Estado brasileiro com maior déficit habitacional do país, segundo Ministério das cidades. E o Firmino Filho com seu trator já demoliu muitas casas, muitas delas sem aviso prévio ou negociação, jogando muitas mulheres para a rua. Sim, é preciso dimensionar que as mulheres e mulheres negras e indígenas são as mais afetadas com a falta de política de moradia.
Firmino Filho desde 2009 já deslocou muitas pessoas que receberam indenizações baixas, muitas delas não se adequaram aos locais para onde foram levadas (apartamentos de 32m²) e retornaram para os bairros de origem. O lugar para onde Firmino quer levar o povo, isso quando ele não derruba a casa e faz a egípcia sem oferecer sequer alternativa, é distante dos aparelhos da cidade como saúde, educação e trabalho e, ainda por cima, olha que ironia, alaga. É como diz Lúcia, é um desrespeito dizer para o pescador que ele tem risco de enchente, dizer para um vazanteiro que ele não conhece os ciclos das águas. Os moradores sabem que suas casas não alagam, mas o lugar para onde Firmino quer levá-los, sim alaga.
Lutar pelas comunidades atingidas pelo Programa Lagoas do Norte é também lutar pela minha família e minha ancestralidade, pois são sujeitos vazanteiros, filhos indígenas das brenhas do maranhão. Sou neta de uma benzedeira e parteira e, por isso, luto pelas benzedeiras e parteiras das lagoas do norte. Lutar contra a ação desagregadora deste programa é lutar para que a história do meu pai não seja repetida. A história de uma criança que aos sete anos de idade foi “dado” para uma família branca para morar na cidade (Parnaíba) e assim ter acesso à direitos como educação. Não queremos que mais crianças sejam traumatizadas ao serem retiradas do seio do seu território tradicional e ancestral, do seio da sua família, da sua aldeia, da sua comunidade para dar lugar ao modelo de cidade e de mundo que a tudo derruba e transforma em concreto.
E é por isso, que eu, jornalista por formação, comunicadora popular por necessidade e questão de classe, pesquisadora da comunicação que põe à ciência à disposição da transformação social, convido você morador ou moradora de Teresina para se posicionar e dizer como está sendo impactado pelo Programa Lagoas do Norte. Perguntamos porque tem que existir um Programa Lagoas do Norte sem moradores? Faço o convite/desafio para você mandar a sua carta dizendo porque é impactado e/ou se solidariza com os moradores da zona norte.
Não nasci nesses solos Teresinenses, mas as águas do Igaraçu (braço do Parnaíba) que banha a minha cidade natal, Parnaíba, me trouxeram até esse território (ora iê iê ô). São laços que me conectam por qualquer espaço-tempo que eu estiver.
Por Sarah Fontenelle Santos, jornalista e pesquisadora em comunicação
Originalmente publicado em: https://ocorrediario.com/eu-moradora-de-teresina-sou-impactada-com-o-programa-lagoas-do-norte/
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