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“Lagoas do Norte Pra Quem?” - Carta à profa. Raquel Rolnik

Teresina, 13 de Novembro de 2019



À profa. Raquel Rolnik

LabCidade/USP


Cara profa. Raquel, entregamos esta carta juntamente com uma grande esperança de termos nossas vozes escutadas. Nesta nossa primeira vinda à cidade de São Paulo trouxemos conosco a confiança de milhares de teresinenses. Desde 2018 quando escutamos sobre você pela primeira vez, através de estudantes da Universidade Federal do Piauí que nos contaram que você é representante da ONU pelo Direito à Moradia, desejamos que este encontro acontecesse.


Na periferia de Teresina a luta por moradia é diária, no entanto desde o ano de 2008 esta tem sido nosso propósito de vida. Neste mesmo ano, quando criado o Centro de Defesa Ferreira de Sousa - CDFS, iniciamos uma jornada que jamais imaginávamos que se estendesse até os dias de hoje ainda sem certezas quanto à nossas moradias. O CDFS não foi criado por acaso, foi uma reação ao Programa Lagoas do Norte - PLN, anunciado pela Prefeitura Municipal de Teresina naquele mesmo ano. Ao chegar à porta de nossas casas o projeto municipal nos prometia uma grande transformação urbana: teríamos acesso à água, esgoto, iluminação pública, escolas, lazer, segurança e tudo aquilo que sempre sonhamos. No entanto muitos de nós não poderia usufruir de todos os benefícios e logo descobrimos que 3.500 famílias seriam despejadas.


Sobre o PLN: O PLN é uma megaprojeto de ‘revitalização’ urbana lançado no ano de 2007 pela Prefeitura Municipal de Teresina - PMT. O projeto envolve uma região de 13 bairros da zona norte de Teresina e atinge diretamente uma população de 92.000 pessoas. Para ser executado o PLN conta com financiamento do Banco Mundial e do BIRD e já custa aos cofres públicos um valor aproximado de 800 milhões de reais. Tal projeto vem sendo implantado em uma das poucas áreas ainda preservadas da zona urbana de Teresina: região que envolve 2 rios, o Parnaíba e o Poti, 11 lagoas interligadas por canais naturais e uma rica diversidade animal e vegetal. Dentro do PLN está sendo executado o Plano de Reassentamento Involuntário - PRI (o qual vem sendo atualizado e do qual ainda temos muitas dúvidas) que impõe a remoção de 3.500 famílias, aproximadamente 15.000 pessoas. A população atingida pelo Programa caracteriza-se, em sua maioria, por pessoas que ganham até 1 salário mínimo, famílias sustentadas por mulheres, crianças e população preta. O PLN, por contrato, tem previsão de se encerrar em dezembro de 2021.


Atualmente, vivemos uma grande tensão social promovida pela falta de clareza e diálogo no processo de execução desta intervenção urbanística. O/as proponentes desse programa estão o impondo para a comunidade, não realizando negociações/diálogos de maneira transparente. Em atitude arbitrária, o/as executore/as não dialogam com a comunidade alcançada com as ações do PLN, contrariando os preceitos da chamada participação social, “tão valorada” nos documentos do programa. Por isso, nós, moradore/as atingido/as pelo PLN, viemos por meio deste documento, expressar nossos pontos de vista e desejos.


(1) Sabemos que a área de atuação do PLN é de imenso valor financeiro para a cidade de Teresina, afinal moramos à 10 minutos do Centro, próximo a hospitais, escolas, shoppings e da chamada “zona nobre”, na qual muitos de nós trabalha. Onde vivemos temos acesso ao transporte público e tudo aquilo que sabemos ser nosso Direito à Cidade.


Assim, pedimos que o programa venha sim sanear a região, garantindo os direitos sociais defendidos em Constituição Federal. Desejamos também que o poder público confira aos moradore/as a documentação oficial/regular das casas e promova, de fato, iniciativas que venham a melhorar as condições de vida do/as habitantes dessas terras, mas que não os retirem de suas casas, arrancando e matando assim suas raízes à medida em que, com suas ações, causam enormes transtornos/danos pessoais, familiares, sociais, psicológicos, afetivos, biológicos, financeiros aquele/as que residem nas áreas de intervenção do programa. Os efeitos negativos do PLN refletem na vida da cidade.


Acreditamos, que não há necessidade real para que removam as pessoas de suas casas. Entendemos que existem sim algumas poucas famílias que, por falta de opção, vivem muito próximas das margens das lagoas, no entanto estas pessoas não devem ser culpabilizadas por isso e não devem ser tratadas da forma violenta como estão sendo; devem participar das decisões sobre suas vidas. A remoção e o reassentamento não constituem-se em alternativas que nos representem no processo de negociação com a PMT. Desejamos, pois, permanecer em nossas residências! Como sabemos, há muitos lugares no mundo onde a humanidade e tecnologia construíram cidades em meio a água. Há anos a PMT vem produzindo uma série de estudos que apontam para o risco ao qual estão sujeitas as famílias ribeirinhas, porém, nós que moramos aqui há mais de 50 anos, conhecemos bem o ciclo das águas e, aquilo que chamam de calamidade pública entendemos que é apenas uma resposta da natureza pelos males que esta cidade causa a ela. As enchentes podem ser evitadas através de limpeza (que impede entupimentos nas redes de esgoto), controle no assoreamento irregular e engenharias de bombeamentos e drenagens adaptadas a cada especificidade. O último alagamento da área deu-se, em 1985, em virtude do represamento do Rio Poty pelo Rio Parnaíba e não ocorreu apenas na zona Norte da cidade. Dada a sua localização geográfica, entre rios, vários bairros da cidade de Teresina correm riscos de serem inundados durante o período chuvoso, esta não é uma característica exclusiva da zona norte da cidade.


Sabemos da beleza do lugar em que vivemos e sabemos dos benefícios de se morar aqui. Hoje todos já sabem disso e por isso iniciou-se uma corrida em busca das melhores terras; a luta contra a especulação imobiliário é outra batalha que travamos. Hoje não temos dúvida que “querem transformar a área de risco em área de ricos”.


Resumindo o primeiro ponto: desejamos a permanência dos moradores em suas casas, a regularização de nossas casas, a rede de saneamento adequada e todas a melhorias urbanísticas que há tanto tempo esperamos. Queremos também que o projeto busque alternativas para conter as enchentes e que a remoção seja a última alternativa, não a primeira como tem sido. Acima de tudo, queremos participar do processo e exigimos respeito. Lutamos pelo Direito à Moradia e queremos ter Direito à Cidade.


(2) A área de atuação do PLN guarda um grande valor cultural, caracterizando-se por ser o território de manifestação dos saberes e fazeres tradicionais da identidade teresinense. Os valores agregados a este lugar não param por aí e talvez o de maior importância seja o valor afetivo, expresso nos laços estabelecidos através do tempo do/as moradore/as com a natureza e entre si. É a relação com o lugar e com a gente que nele reside que torna o lugar ainda mais especial. O CDFS está fundado em uma das comunidades mais tradicionais - a comunidade da Boa Esperança, a qual está ameaçada de remoção por conta do alargamento de uma avenida (av. Boa Esperança).


Como valor histórico, a zona norte de Teresina é o berço da cidade de Teresina. Como nós sabemos, nunca esquecemos e sempre relembramos, antes mesmo da fundação da capital, já existia um povoado nestas terras - a Vila do Poti. Quando a capital foi inaugurada a Vila foi esquecida. Seus moradores, remanescentes indígenas e quilombolas, não foram bem quistos na primeira capital planejada do Brasil e, desde então, nos mantivemos nesta região que hoje é a zona norte de Teresina, apenas 6 km do Centro.


A população da zona norte - através da força escrava de trabalho – foi/é uma das maiores realizadoras da construção de Teresina. Os tijolos que ergueram as igrejas, prédios públicos, calçaram as ruas e deram forma à capital foram produzidos pelo povo negro do norte de Teresina. Hoje lembraram deste povo, perceberam que moramos perto demais da ‘civilização’ e continuamos não sendo bem vindos.


A história de Teresina não reconhece quem realmente construiu a capital, vende-se uma estória romantizada. Hoje vivemos em uma região que tornou-se turística e nossa gente e nosso território é o grande atrativo. Desde o início do Programa que lutamos pela realização de estudos prévios, em especial um Estudo Antropológico, o qual só foi realizado no ano de 2018 após intermédio do Ministério Público. Dessa forma entendemos que o PLN, durante sua primeira década de execução, aconteceu às cegas, sem se conhecer as pessoas estavam assentadas no território. Este mesmo estudo é questionado por antropólogos locais, os quais, em resposta produziram o Contra-estudo Antropológico do território do Lagoas do Norte.


Que se faça sim um projeto que estimule o turismo no Estado e no Município, mas com muita cautela para que não se descaracterize a flora, a fauna, o curso das águas, nem a cultura local pois são elas e somente elas que darão o diferencial necessário ao sucesso do turismo local. Não queremos que nosso território, área considerado o pulmão da cidade, passe por uma limpeza promovida pela urbanização agressiva (retirada de árvores, uso de asfalto em excesso, desmatamento da vegetação local - entendida como mato, dando lugar a uma grama sem vida), mas que haja a manutenção do verde, importante para todo o planeta.


Resumindo o segundo ponto: desejamos a manutenção da fauna, flora, e cursos das águas, associadas a ações de educação ambiental. Exigimos que nossa cultura seja reconhecida e que o projeto reflita nossa real identidade, não um cenário pra turista ver.


Como complemento ao segundo ponto, reafirmamos aquilo que consideramos o mais importante - as pessoas. A zona norte de Teresina apresenta uma vida cultural rica e diversificada, com modos de fazer e viver próprios. Os aspectos físicos-geográficos da área dialogam com tradições, saberes locais e memórias sociais. Nesta parte da cidade podemos encontrar grupos culturais (bumba meu boi, capoeira e outros), atividade oleira e cerâmica, a pesca artesanal e a horticultura. Nos quintais da região, há criação de animais de pequeno e médio porte, cultivo de árvores frutíferas e de plantas medicinais tratadas por rezadeiras. Vanzanteiros, antigos vaqueiros, lavadeiras, bordadeiras e povos de terreiro também compõem a paisagem cultural deste lugar, significado ao longo do tempo por seus/suas moradore/as. Com o avanço das ações do PLN, memórias, saberes, fazeres, a vida e a identidade cultural do lugar e de seus/suas moradore/as encontram-se ameaçados.


Na zona norte de Teresina, moradore/as estabeleceram vínculos afetivos com o espaço, criando redes de sociabilidade. Ele/as, identificam-se com o lugar onde moram, vivem e trabalham. O programa, com as ações de remoção, que desrespeitam e não reconhecem atividades tradicionais da região e modos de vida como bens imateriais que formam o patrimônio cultural da zona norte, incide diretamente nas culturas barriais da região e tende a levar a perdas culturais e identitárias nesta parte da cidade.


Diante das ameaças, recentemente iniciamos o processo pelo Autorreconhecimento de Remanescente Quilombolas junto à Fundação Palmares. Esta foi mais uma estratégia de luta com o objetivo de garantir a preservação da nossa cultura e permanência de nosso povo em suas terras. Também iniciamos os estudos junto com o IPHAN pela possibilidade de salvaguarda da paisagem natural e cultural de nosso território como forma de impedir a instalação de grandes empreendimentos e grandes transformações, já em curso com o PLN.


Resumo do terceiro ponto: queremos barrar o projeto colonizador de higienização dos povos tradicionais brasileiros e desejamos que a verdadeira história da cidade de Teresina seja contada. Exigimos ter Direito à Memória.


Por fim gostaríamos de dizer que nossa luta, que tem como front o povo da zona norte de Teresina, vem sendo apoiada por uma série de instituições às quais nos dão forças e somos gratos/as. Para além das já citadas devemos mencionar o apoio dado pela Defensoria Pública da União, Ministério Público do Estado do Piauí, às/aos artistas e pesquisadores piauienses, Professores/as que fazem contracorrente dentro da Universidade Federal do Piauí e Universidade Federal do Piauí, bem como às/aos poucas/os e corajosas/os jornalistas locais.


Ao longo de mais de uma década de luta, são inúmeras as ações e pessoas às quais nos trouxeram até aqui. O agravamento das violências no Brasil em 2019 também se refletiu na zona norte e na políticas de reassentamento imposta. Nossa reação tem sido buscar formas de ecoar ainda mais alto nossos gritos.


Em Agosto deste ano, em denúncia conjunta de 200 famílias, acionamos o Painel de Inspeção do Banco Mundial - órgão responsável por fiscalizar as políticas do banco (em anexo). Entre os dias 7 e 9 de novembro recebemos a visita de sua comissão de inspeção a qual agravou nossas incertezas principalmente pela falta de sensibilidade que demonstraram em relação à nossas identidades culturais, reafirmando o discurso do risco.


Em Agosto de 2019 também fizemos denúncia à 10ª sessão do Tribunal Internacional de Despejos (em anexo), no entanto nosso caso não foi aceito, porém fraternalmente justificado por conta do momento de crise mundial em vivemos. Infelizmente, apesar do convite, não conseguiremos participar do Tribunal, marcado para Dezembro, por falta de recursos.


Hoje gostaríamos que você, profa. Raquel, também soubesse o que se passa no norte do Brasil, na capital do Piauí, mais precisamente na zona norte da cidade. Acreditamos na força da espiritualidade e é através dela que chegamos até você em mais esse dia de luta. Como sempre lembramos nas reuniões em nossa comunidade não é de hoje que resistimos, nossa luta já faz mais de 500 anos.


Com nossas saudações e desejo de muita saúde lhe convidamos para vir conhecer nossa comunidade e que nos ajude a compreender ‘Lagoas do Norte Pra Quem?’.






Maria Lúcia de Oliveira Sousa

Presidente do Centro de Defesa Ferreira de Sousa




Avenida Boa Esperança n° 4895, São Joaquim, Teresina - Piauí - Brasil

E-mail: centrodedefesafs@gmail.com

CNPJ: 10.949.286/0001-00



Disponível em: http://www.labcidade.fau.usp.br/wp-content/uploads/2019/11/carta-Raquel-Rolnik.pdf

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